Quem são os bárbaros?

Publicado: 18/10/2011 em ARTIGOS
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Por Modesto Neto
“O meu intento neste trabalho foi servir ainda cá aos índios, já que não posso mais fazer lá […].” Bernard de Kante, no livro Katecismo Índico da língua Kariri, 1707.
O termo ‘bárbaro’ embora seja aplicado para designar uma das mais longas guerras entre indígenas e portugueses no Nordeste brasileiro no século XVII chamada ‘A Guerra dos Bárbaros’ não foi utilizado primeiramente neste período histórico. A palavra bárbaro provem do grego antigo e era utilizado para determinar os povos não-gregos, sendo ‘bárbaro’ todos aqueles que não tinham como língua materna o grego, mais adiante o termo foi utilizado para referir-se a povos não civilizados.

Bárbaros, ignorantes, incivilizados. Na América Portuguesa era assim que se enxergavam os povos indígenas que andavam com suas ‘vergonhas’ de fora, não compreendiam o que era pecado e não possuíam roupas, cruzes e costumes europeus. Apesar do povo indígena que habitava no Brasil ser rico culturalmente, possuir noção de divindade e organização social para o ‘sábio’ português vindo da Europa eram apenas bárbaros, incultos e pagãos. Serem submetidos à égide cultural portuguesa, tomados como escravos a serviço dos europeus e forçados a aceitarem um deus que não era o seu era – para os portugueses – um favor que Portugal fazia aqueles índios nus que para eles estavam tão longe do céu e tão próximos do inferno, apesar de estarem sendo brindados no seu cotidiano por um paraíso natural entre florestas virgens e horizontes de terras e águas que alimentavam sua fome e saciavam sua sede.

O conflito que iniciou-se no sertão baiano e chegou a capitania do Rio Grande no século XVII foi cunhado em muitos livros didáticos de história como “A Guerra dos Bárbaros” fruto da visão etnocêntrica que permeava os escritos e registros históricos que refletem a visão colonizadora já que seria “bárbaro” aqueles que se negassem a aceitar o poder e a cultura branca, portuguesa e católica que compuseram o arsenal documental da época imprimindo nos documentos e registros a visão etnocêntrica impregnada no discurso português.

Esta ilustração histórica vivenciada no Rio Grande do Norte serve tão somente para apresentar as pessoas como a noção de soberania existia do português sobre o índio e sobre o escravo negro oriundo da África a fim de servir a demanda de braços para o trabalho duro no campesinato, seja na cana de açúcar, em outras plantações ou no trato do gado. Minha visão jamais poderia ser colocada ao serviço do pensamento europeu, branco e dito civilizado. Este artigo não se propõe a fazer uma análise imparcial dos acontecimentos, ele está claramente a serviço da defesa do pensamento negro e indígena que foram elementos fundamentais a construção do Brasil enquanto país e cultura.

A Igreja legou ao mundo muitos homens e mulheres que estiveram a serviço do verdadeiro pensamento cristão vivenciando seus dias sobre a solidariedade, a caridade e a bondade estendida aos povos. Paulo Evaristo Arns além de sua dedicação aos trabalhadores e as famílias da periferia em São Paulo levando a igreja ao contato destes, durante ditadura militar, na década de 1970, notabilizou-se na luta pelo fim das torturas e restabelecimento da democracia no país, junto com o rabino Henry Sobel, abrindo uma ponte entre o judaísmo e igreja católica em solo paulista. No mesmo período, também foi um dos escritores do livro “Brasil Nunca Mais” e integra até hoje o movimento “Tortura Nunca Mais”. Dra. Zilda Arns que estava no Haiti fazendo aquilo que mais amava – cuidar das pessoas – quando Deus a tirou de nós é mais um grande exemplo de amor ao próximo. Ambos são exemplos contemporâneos já que Zilda nos deixou há pouco tempo e Evaristo Arns ainda prega aos paulistanos. Frei Caneca que afirmava no século XIX “quem bebe da minha ‘caneca’ tem sede de liberdade” foi um exemplo não apenas de um bom religioso, mas de um homem político na defesa da emancipação do nosso povo enquanto nação.

São incontestáveis as contribuições que a Igreja legou a nós. Porém, em relação ao processo de catequização imposto goela abaixo do povo indígena em um ‘estrupo etnológico’ como costumava dizer o saudoso Darcy Ribeiro deve ser observado. Embora vários setores da própria Igreja reconheçam na contemporaneidade que o processo de catequização se deu de forma equivocada, precisamos ver quem foi o verdadeiro bárbaro neste mosaico histórico. O Rio Grande do Norte no dia 3 de outubro para em feriado estadual em reverência aos mártires de Cunhaú e Uruaçu. Uma homenagem justa àqueles que morreram defendendo a fé cristã. Aproximadamente 200 homens, mulheres e crianças assassinadas de maneira brutal por índios janduís e holandeses. Não pode-se contestar. Porém podemos perguntar: quais são os mártires indígenas?

Acauã, Amanari, Kiary, Xambré, Butúie. São todos nomes indígenas e quantos milhares foram mortos covardemente? Quantos casais foram separados e quantos filhos nunca mais virão seus pais? Quantos braços foram tragados no monstro da escravidão e no trabalho desumano? Quanto suor misturou-se ao sangue? Perguntar-se-á quanto em terra foi roubada, apropriada, retirada, pilhada do povo indígena e a resposta é simples já que todo o território brasileiro pertencia a estes povos. Aqueles que andavam nus, respeitavam seus deuses e caçavam apenas para alimentar a fome do dia foram vestidos em roupas desconhecidas, forçados a seguir outros preceitos religiosos e usados como bichos para alimentar não a fome de comida, mas a sustentação de um Coroa do outro lado do mar. Afinal de contas, quem eram os bárbaros?

comentários
  1. Leonardo da Rocha Bezerra disse:

    Excelente artigo. Realmente temos a Igreja hoje Sã, antes só Deus sabe oque poderia ser num alto patamar de influencia, que vai desde os santos homens instruídos e prontos para lutar pelo bem, até pessoas de outra cultura catequisados sem nem saber o que o termo viria a ser realmente. Parabéns, belo artigo.

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